Em 2025, o livre-arbítrio virou lenda urbana — tipo honestidade em reality show ou Wi-Fi de aeroporto que realmente funciona. Acreditar que ainda tomamos decisões por conta própria é tão convincente quanto acreditar que aquele anúncio de tênis apareceu por acaso logo depois de você comentar, casualmente, que estava “precisando de um tênis novo” — ao lado do celular, claro.
A gente acorda com um despertador “personalizado”, escolhido por um app com base no nosso “cronotipo ideal” (porque até dormir virou um espetáculo de alta performance). Começa o dia ouvindo uma playlist montada por um robô que jura nos conhecer melhor que nossa própria mãe. E na hora do almoço, pedimos exatamente o que o algoritmo do delivery decidiu que “tem mais a sua cara hoje”.
Spoiler alert: sua cara, aparentemente, é a de uma pessoa faminta, apressada e emocionalmente instável — ou seja, qualquer ser humano funcional.
Não acredita? Sabe aquele crush que você jurava ter aparecido por acaso? Que coincidência mística te sugeriria, assim do nada, um librianjo crossfiteiro com 94% de compatibilidade no Tinder/Happn/qualquer-outro-app-de-carência-geolocalizada, hein?! Milagre? Só se for o milagre da geolocalização somado ao roubo discreto — mas eficiente — do seu histórico de pesquisa.
“Ah, mas a gente deu match!” Claro, flor. O único match aí foi entre seu desespero afetivo e o algoritmo que te flagrou assistindo Um Lugar Chamado Notting Hill e O Diário de Bridget Jones pela terceira vez em 15 dias.
Ou então, lembra daquela fase em que todo mundo virou sommelier de vinho natural e especialista em fermentação selvagem? Pois é. Bastou o Instagram enfiar uma kombucha em cada feed que, pronto: nasceu um novo estilo de vida. Igualzinho ao surto coletivo do jejum intermitente, do colágeno hidrolisado e da meditação guiada por coach espiritual com filtro sépia e voz suave de ASMR.
E você hombre tá lá, se achando progressista (leia-se: esquerdomacho-gourmetizado) porque compartilhou um post sobre masculinidade saudável com hashtag #ChoraCarecaDoCampari. Mas segue atolado num sistema que reproduz o mesmo machismo de sempre — só que agora com inteligência artificial e filtro sépia. O algoritmo não quer que você evolua, meu caro. Ele quer que você clique. Crescimento pessoal não dá engajamento. Polêmica dá. Nude dá. Homens chorando? Ah, isso não dá nem curtida.
Mas será que ainda resta algum fiapo de vontade própria aí dentro ou a gente virou só uma marionete hipster com conta no Nubank e senso crítico terceirizado via thread no Twitter (ou "X", né, desculpa, Elon)?
E é agora que o buraco fica mais fundo — e mais bem ranqueado no SEO: algoritmos não são neutros. Nunca foram, lógico. Eles são programados. Por pessoas. Pessoas com histórico, viés, crenças, privilégios e um leve desprezo por quem ainda acha que o feed é “orgânico”.
Ou seja: o conteúdo que chega até você — homem, mulher, ou alma perdida que ignorou todas as atualizações da política de privacidade — vem recheado de preconceitos, embalado em UX fofinho e musiquinha Lo-Fi que disfarça opressão com estética Tumblr.
E não se engane: isso não é só sobre consumo. É sobre poder. Porque esse clube do bolinha high-tech, fundado pelos nerdolas do Vale do Silício que nunca pegaram um ônibus lotado na vida, acha que sabe o que é melhor pra humanidade. Spoiler: não sabe. Mas vai continuar tentando te convencer disso — de preferência, com uma notificação push às 9 da manhã.
E não ache que você vai escapar só porque desligou o celular. Desconectar hoje é quase tão viável quanto andar pelado em horário comercial: teoricamente possível, praticamente inviável e, em muitos contextos, socialmente desconcertante, digno de reportagem no SPTV. (Sim, estou falando do peladão da Faria Lima.)
Então o que nos resta? Viver em modo semente eterno, pagar tudo em dinheiro vivo e escrever cartas como se fôssemos os Maias reencarnados no Sedex 10? Não necessariamente.
Talvez a saída seja tão simples quanto subversiva: du-vi-dar.
Duvidar da sugestão de filme “feito pra você”, da lista de “top trends da semana”, daquele conteúdo viral que “você precisa ver”. Questionar por que aquilo chegou até você, e não outra coisa. Olhar pro feed com a mesma cara de suspeita que você faz quando o garçom garante que “o prato do dia acabou de sair”. Será mesmo? Ou é só o resto requentado de ontem com uma folha de rúcula por cima?
Porque, no fim das contas, continuar fingindo que temos controle absoluto sobre nossas escolhas é confortável — tipo edredom velho: quentinho, mas cheio de ácaro. E a verdade — aquela que o algoritmo não quer que você ouça — é simples: resistir não exige virar um ermitão digital, meditando num bunker sem Wi-Fi. Resistir, hoje, é reaprender a fazer escolhas erradas. Mas que sejam suas.
E, nesse cenário todo filtrado, cronometrado e monetizado, talvez isso seja o último ato real de liberdade que ainda nos cabe. Escolher, com consciência (ou pelo menos com suspeita), o que pensar, o que sentir, o que consumir — e, principalmente, o que ignorar.
Quem sabe, no meio do bombardeio de “conteúdos imperdíveis”, você ainda descubra que existe uma pequena chance de ser mais que uma estatística previsível num relatório de engajamento de influencer, enviado pra uma agência de marketing decidir se vale o media kit.
Nem tudo precisa vir embalado como “recomendação personalizada”. Às vezes, o clique mais valioso é justamente aquele que você não fez.
(E o algoritmo, nesse momento, chora silenciosamente em binário.)
Thiagao, que tapa na cara! Parabéns pela interpretação
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