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Do Berro ao Bolo: O Ano Que Eu Não Escolhi Te Amar, Antonio.

Hoje Antonio faz um ano.
Um.      
Ano.

O tempo, depois que você vira pai, não passa — ele te atropela de ré, em câmera lenta, com a trilha sonora de um berro primal e cheiro de fralda morna no ar.

Aliás, esse tal “tempo” é uma ficção criada por mães exaustas e filósofos que nunca trocaram uma fralda às 3h da manhã. Porque desde que esse ser de 75 cm e quase 10 kg chegou, os dias deixaram de ter lógica. Cada hora dura quatro semanas e, ao mesmo tempo, passa num espirro — ou num pum que assusta e vem com bônus surpresa.

Esqueça relógio. Meu calendário agora se mede em mamadeiras, fraldas e agressões com mordedores em forma de girafa. Eu não acordo mais — sou expulso do sono com a sutileza de uma sirene de incêndio e a ternura de um chute de UFC na traqueia.

Sou evocado. Convocado. Arrancado da cama por um grito que mistura o pavor de Hitchcock com a urgência de uma reunião do G20. Tapas, cotoveladas e uma auréola de caos me despertam como se eu fosse figurante em Apocalipse Now – Versão Fralda.

Seis da manhã não chega. Ela invade. Empurrada goela abaixo como mamadeira morna. E a jornada começa: grito primal, looping de tarefas que fariam Hércules pedir arrego — mamadeira, cocô, brinquedo sonoro que jamais se cala, choro, risada maníaca, comidinha, refluxo, susto, mais cocô, tentativa frustrada de soneca, água no body como se fosse protesto ambiental e — surpresa! — ainda são só nove da manhã. Nove-da-manhã.

A eternidade, meus caros, não é o paraíso. É um bebê com refluxo que confunde sábado com terça-feira e acha que dormir é uma conspiração do Elon Musk.

Mas não me entenda mal — isso não é uma reclamação. É epifania. E aqui começa o verdadeiro desvio cognitivo, porque: eu amo. De um jeito idiota, desesperado, sem dignidade.

Amo como quem cai num buraco e acha confortável. Porque amar um filho é entrar num relacionamento unilateral, com cláusulas leoninas e zero reciprocidade emocional — e ainda achar tudo isso lindo.

Não tem glamour. Tem babador. Não tem diálogo profundo. Tem grunhido com arroz no nariz. E ainda assim...tem algo ali. Um sentido primitivo, quase cavernoso, que transforma limpar cocô às 3h da manhã numa peregrinação espiritual rumo à renúncia do ego.

Ser pai é atuar num reality show onde você entra de pijama, sem roteiro, e pisa num Lego antes da primeira fala. É estar numa peça escrita por recém-nascidos, dirigida por Kafka e com trilha remixada da BlueyÉ amor tipo SUS: universal, gratuito e frequentemente subestimado.

E aí vem aquele momento besta, às 3h48 da manhã: ombro moído, camiseta vomitada, bebê adormecido no seu peito — e você sente, inexplicavelmente, que está no lugar certo.

Antonio me destruiu.
Com amor.

Me desconstruiu.
Com olhar pidão.

Me reconstruiu.
Com tapas na cara e risadas sem dente.

E não, não sinto falta do “eu” de antes. Aquele era só um rascunho, uma versão beta que achava que pedir vinho francês no bistrô o tornava interessante.

Antonio me ensinou isso antes mesmo de dizer “papai”. (Ou aprendeu e decidiu que me chamar de “ãããmm” era mais engraçado. Respeito.)

E sobre o tempo?

Pirou.
Você vive três anos num domingo.
E 15 minutos de silêncio viram retiro espiritual.

E quando percebe, está lá, cortando o bolo. Apagando a vela. Se emocionando porque alguém que ontem era uma mini ameba hoje aponta pro carrinho de plástico e fala “vraum” como se soubesse o que é dirigir.

E aí, a ficha cai: ser pai não é sobre você.
É sobre sair de cena.

É sobre — como disse Gregório Duvivier — deixar de ser o centro do universo. E descobrir que existe liberdade na descentralização. Existe paz no colapso do ego. Existe beleza em ser coadjuvante da vida de alguém.


Você me virou do avesso, Antonio.
Desorganizou minha alma.
Me fez abandonar qualquer ilusão de controle.
E depois reconstruiu um novo, do seu jeito, com brinquedo torto e trilha de risada molhada.

E sabe de uma coisa? Eu amei.

Porque amar um filho não é virtude. É desobediência ao narcisismo. 
Não é sobre ser o “pai-instagramável”, que acha que por trocar a fralda e dar banho deve ser ovacionado como se tivesse salvado a democracia.
É ser pai-falível, remendado, remelento, que se recusa a terceirizar o afeto.

No fim, talvez eu não tenha dormido muito nesse seu 1º ano de vida.
Mas acordei. Pra vida.

E tá tudo bem.

Porque, pela primeira vez, o mundo não gira ao meu redor.

E eu agradeço.
Do fundo do meu coração.

Parabéns!
Pelo seu 1º aniversário.
Por existir.
E por me fazer entender que o AMOR verdadeiro não é dívida — é dádiva.

Vida longa ao caos.

E ao amor, que finalmente fez sentido.

Obrigado, filho.
Te amo.

Um pai recém-nascido de um bebê de um ano.

Comentários

  1. Tão bom. Que eu gostaria da versão da mãe

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  2. O Tonton é uma figura esse carinha...Adoro ver como fala dele...e dói risada sempre quando conta as histórias. Parabéns...Deus abençoe essa família.

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  3. Lindos. Que Tonton cresça forte e cercado de amor. É uma alegria acompanhá-los daqui, Thi. Amo vocês.

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  4. Que lindo! Amei ! A Tia Avó aqui tá chorando de emoção ❤️

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