(Conto 1, "das Andanças")
A verdade é que não havia mais ninguém em volta. A névoa daquela manhã de quinta-feira se fazia mais densa e fria do que nunca. O cheiro de "croissants" e cafés impregnava o ar como incenso numa procissão, e o som das asas das pombas ditavam o ritmo triste e fúnebre daquela manhã de primavera.
8h15 marcava o relógio da estação. Ainda me sobravam 8 minutos naquele banco frio, pois com uma precisão britânica o trem partiria as 8h23. Do inicio da plataforma ao vagão 18, acento 63 eram 316 passos - meu dei ao trabalho de contar a ver se me distraia. 8h24, o primeiro tranco do trem anuncia o adeus àquela cidade. Eu voltava calado, pensativo, a testa apoiada na janela, a alma e o coração no fundo do bolso.
Durante todo caminho pensava com meus botões que tempos atrás o destino - ou isso que chamamos assim, tao descuidadamente, de Destino -, me havia dado certo "cadeau": uma possibilidade de amor. Ou o que chamamos também com certo ingenuo desleixo - e certa pressa - de amor. E me lembrava como esse amor havia se fragmentado à minha vida com as conversas, risos, almoços e passeios. Duas vidas que foram cruzadas (pelo destino) entre copos de vinho e água, casquinhas de baguetes e macarons de chocolate.
Me lembrei que redescobri magias e surpresas sem susto algum a cada encontro e desencontro daquele amor. E estranhamente me sentia protegido, você sabe como, quando aqueles pedacinhos desconexos voltavam a se armar, voltando a fazer sentido aquilo que outrora havia tomado sentido nenhum. “Estou de novo protegido!” Sentia que nenhum mal aconteceria enquanto conseguisse me ver naquela parte do corpo que por vezes anda tão desprezada. É um canto ao qual só quem ama tem acesso e apenas quem não tem medo de sua própria vulnerabilidade usa. Visível para qualquer um, mas que quase ninguém nota. O fundo dos (teus-seus-meus-nossos) olhos.
A cada minuto naquele trem, cada quilômetro percorrido, compreendia o porquê de ter me perdido tanto naquela outra pessoa. Só eles me deram o que sempre precisei. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra vida, outro amor. E desejava não sair do centro daquele espaço, daquele colo quente que é ter quando uma face também tem uma face para você, no meio das bagagens passadas que hoje já não tinham o rosto atravancando o coração.
Mas essa face, esse olhar, já havia se perdido como “um cego em um tiroteio”. Era isso, aquela outra vida, que um dia foi inesperadamente misturada à minha, já não olhava a vida com os mesmos olhos. Já não conseguia me ver naquele colo, no fundo daqueles olhos. Havia me tornado, naquele dia, só mais um reflexo naqueles grandes espelhos da alma. Pensava e sabia que em seguida viriam o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas naquele trem, voltava comigo de lá a memória de qualquer coisa macia para me alimentar nos dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos.
Olhando a paisagem seca-esverdeada de um final de inverno pelas janelas abafadas daquele trem, eternizava aquele momento de "mel e sangue" que o destino havia colocado tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Sabia que nunca iria esquecer tudo o que foi vivido - até porque não tenho problema de memória.
10h12. Sinto a freada brusca do trem adentrando a plataforma, fazendo minha cabeça se curvar contra minha vontade, como sinal de cumprimentos de dois lutadores de judo ao final de uma luta. Um, vencedor. Outro, vencido agradecido. Volto pra casa, e curvo a cabeça agradecido. E se estendo a mão, para esse outro judoca de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. E ai me lembro das palavras de uma velha amiga: “o amor é como a fé...a gente o deposita na outra pessoa sem ver o que ela tem por nos.”
Alguém já perdeu a fé?
Sorrio, então.
Olá, bom dia!!!
ResponderExcluirFiquei encantada com a tua historia e, esse teu jeito de contar cada detalhe, cada experiência, cada 'coisinha' de como tudo aconteceu. Eu li algumas historias tuas, e te confesso que meu pensamento era só da uma 'olhadinha' por alto nas tuas historia rs....Mas, você me encantou com suas palavras e historias, e agora vou continuar lendo rs.
Abraços